segunda-feira, 5 de junho de 2017

Os impactos das nossas escolhas - um texto 'sobre' e 'para' mulheres

Eu não posso te deixar, te deixar. Querida minha. Te levarei junto. Disse o assassino. Com aplausos do público. (Esôfago - Karina Buhr).

Mulher sem razão ouve o teu homem. (Mulher sem razão - Bebel Gilberto / Cazuza)



Este texto é uma reflexão sobre a difícil conquista da autonomia feminina em um mundo [ainda] machista.

 
Outra viagem de trabalho e um reencontro super gostoso com uma querida amiga de Sampa.

Após muita insistência dela, acabei aceitando o convite para me hospedar em seu apartamento, mesmo tendo a possibilidade de ficar em um hotel pela empresa. Sabia que perderia minha privacidade por completo, assim como a possibilidade de explorar a "cultura local", rs... Mas com certeza valia a pena pela possibilidade de passar mais momentos com ela após mais de dois anos sem nos vermos. 

Marília atualmente é uma dedicada esposa e mãe de uma bebê muito muito fofa, que despera até em mim os instintos mais profundos de paternidade (não se empolgem muito... Já passou rs...). 

 

E vê-la assim me levantou uma série de questionamentos e reflexões.

Marília sempre foi uma mulher independente, decidida, que fazia as coisas sem se importar muito com a opinião alheia. Ela foi criada numa família meio errática, com pai e mãe um tanto quanto desnorteados, mas felizmente (inclusive pelo apoio de tios, tias e primos) conseguiu fazer uma boa faculdade e começou a se estabelecer profissionalmente. Nunca reclamou das dificuldades e sempre deu duro, mesmo em empregos não muito bons. 

Eu sempre admirei essa garra dela e a postura de "comigo não tem tempo ruim, bora vencer na vida!". Ela tinha se mudado pra São Paulo num movimento de ascensão profissional e estava indo muito bem, ganhando mais, comprou o 1o carro e as possibilidades de desenvolvimento na carreira eram evidentes. Os feedbacks da sua chefe eram os melhores e em pouco tempo já tinha se tornado a principal assessora. 

Marília descobriu as delícias de Sampa e se adaptou muito bem aqui, dividindo apto no centro com um colega gay.  Ela é do estilo "mulherão" - pernão, peitão, bundão - então claro que isso chama a atenção dos homens. E ela é beeeem namoradeira, hehehe (sem nenhuma conotação machista que normalmente é dada a este termo, principalmente pelas próprias mulheres) - ela gosta de namorar, de conhecer e de transar com os caras, aparentemente sem muita culpa. O corpo é dela e ela faz dele o que quiser.

 

E isso eu observava, ela se impunha perante os caras, não baixava a cabeça, discutia de igual pra igual... Teve um namoradinho do interior - coitado - era tímido, ingênuo e completamente apaixonado... Penou na mão dela, foi feito de gato e sapato... Já um outro, malandro experiente e um pouco mais velho, tentou, tentou, mas não conseguiu dobrá-la... O namoro era uma constante montanha russa. 

Eis que num momento de solteirice da Marília, a família teve a "infeliz" idéia de apresentá-la ao Marcos.... Sabe aquela coisa da 'cliente da irmã que tem um primo solteiro da igreja' ? Pois fizeram um jantar pra que os dois se conhecessem e eles começaram a se ver, a sair e pouco tempo depois engataram um namoro. Acho isso incrível, porque normalmente se parte do pressuposto de que as pessoas estão infelizes por estarem solteiras, então é uma quase "missão" arrumar alguém pra acabar com isso. E no caso dela, havia um certo incômodo da família por ela ainda não ter se casado  - "afinal" já estava com 30 anos. 

O Marcos é um cara bem conservadozão, bem quadrado... Criação rígida, cresceu na igreja, os pais tinham um pequeno comércio e ele também sempre batalhou desde cedo. Do que consigo ver, acho que talvez nunca tenha tido espaço pra maiores diversões ou prazeres na vida, o importante era trabalhar, juntar dinheiro, ter uma vida melhor e com conforto. O resto é pura bobagem [meu pai pensa assim também].

O namoro foi evoluindo até que fatalmente veio a proposta de casamento, mas que implicaria em uma mudança para bem longe de São Paulo. A Marília tentou ainda arrumar um trabalho pro Marcos aqui, na empresa de um amigo nosso, mas o Marcos não queria ficar em São Paulo, não gostava aqui, da bagunça e agitação, queria um lugar mais tranquilo e seguro. Daí ele de certa forma colocou um ponto de inflexão na história: se ela não quisesse se mudar com ele, talvez fosse o caso de não se verem mais. 

O fato é que Marília aceitou a proposta, eles se casaram e se mudaram de São Paulo para tentar a vida em outro lugar. Caso não desse certo, ficou acertado que voltariam.

Mas deu certo... 

E ela ficou definitivamente com Marcos numa cidade bem longe de São Paulo e da família dela. Pouco tempo depois eles engravidaram e atualmente ela cuida da casa e da filhinha recém nascida. 

A dinâmica do casal é interessante. Eu sinto que o Marcos se incomoda muito com esse jeito mais expansivo e espevitado da Marília - ela ri alto, é desbocada, adoooora uma cerveja... E na concepção do Marcos, isso não cabe a uma esposa-mãe. É mais uma vez a reedição do tosco "bela, recatada e do lar". Sinto que o homem hétero brasileiro padrão foi educado pra buscar isso: uma mulher que seja "discreta" (aaaahhhhh como odeio a conotação que deram a essa palavra nos nossos dias!!!!), que fale baixinho, que não seja questionadora, que acate as decisões do marido, afinal ele é o provedor do lar e "chefe" da família. 

 

Bom, se você considerar que a bíblia exorta as mulheres a serem submissas a seus maridos, não é de se espantar, né? (E daí os cristãos precisam dar saltos triplos carpados hemenêuticos pra justificar essa passagem de Paulo, relativizando o alcançe da palavra "submissa" - mas na verdade continuam pregando que cabe ao homem a palavra final sobre a família... Não muito diferente do que era no império romano... só não pode mais matar... Ah... Bater também não pode.... Até que é um avanço, não acham ?).

Mas voltando à dinâmica do casal - enquanto eu estava no carro com eles passeando pela cidade, os dois constantemente discutiam, trocavam umas farpinhas, umas ironias... E ele tem o hábito de chamá-la de "querida", e o tom é o pior possível, um tom irônico, do tipo "presta atenção na bobagem que você tá dizendo". O bom é que ela não se faz de rogada e revida. Ele fala pausado e baixo. Ela fala alto e incisivamente. Eu sinto que ele sempre tá querendo dobrá-la, quase que domesticá-la. Fica tentando fazer com que ela não beba, por exemplo. Só que naquele lugar, beber seja talvez o único pequeno prazer que ela tenha. 

 

Numa de nossas conversas a sós isso tudo veio à tona de forma sutil. Claro, eu não iria dizer tudo o que achava, que achava que ela não deveria ter saído de São Paulo, que deveria ter ficado aqui e feito carreira, curtido a cidade e que caso quisesse se casar, que fosse com alguém mais parecido com ela. A essa altura do campeonato, seria muito cruel da minha parte fazer isso. 

Mas eu sinto que ela vive esse conflito até hoje, pensando se fez a melhor escolha. E de certa forma, pra buscar um pouco de conforto (porque reverter uma decisão dessa é muito custoso - praticamente impossível) ela busca formas de se convencer. A tantas da conversa ela me fala - "Ah, o Marcos foi um presente de deus". Foi como se ela entendensse que estava trilhando um caminho errado em São Paulo e que deus então, para "ajudá-la" a corrigir esse caminho, tivesse mandado um varão para resgatá-la. 

Incrível como na visão dela, a vida que ela levava em São Paulo - autônoma, dinâmica, intensa e pazerosa - talvez não fosse a mais adequada para uma mulhere 'direita'.  É um movimento forte, e às vezes é difícil resistir. Essa sensação de impropriedade, de culpa, de reprovação - que é sentida por nós mesmos mas também que vem em nossa direção a partir de pessoas próximas. A Marília tentou resistir à pressão da família, conseguiu por um tempo, mas aos 44 do segundo tempo, acabou cedendo a essa idéia e optou por "adequar-se".

Sempre me incomodou e me revoltou esse tipo de movimento na nossa sociedade machista e patriarcal. Primeiro há a figura paterna para manter as mulheres dóceis e bem comportadas. O pai é substituído na sequência pela figura do marido e esse cerceamento continua firme e forte. Felizmente muita coisa mudou, a começar pelo discurso, pregando mais igualdade entre os gêneros. Mas a prática ainda deixa muito a desejar. Muitas mulheres são cotidianamente cerceadas por seus maridos em sua autonomia. Muitas nem se dão conta disso. Outras aceitam passivamente. Algumas poucas tentam se rebelar e pagam um alto preço. Pagam o preço de serem hostilizadas por parentes e amigos próximos ao casal, são taxadas de inadequadas, isso quando não sofrem algum tipo de violência física ou verbal.

Eu espero que mesmo em um cenário que não lhe é muito favorável, a Marília consiga incorporar outros papéis ao de mãe e esposa - ela é  do tipo empreendedora e certamente vai acabar abrindo um pequeno negócio na cidade. Torço pra que resista a todas as pressões ilegítimas que incidem sobre ela, que não se submeta aos caprichos machistas do marido (que pensa inclusive estar agindo na melhor das intenções, em benefício do casal e da própria família) e que continue a tomar sua cervejinha gelada sempre que quiser! 

 

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